FICHA TÉCNICA:
Autora: Gillian Flynn
Editora: Bertrand
Número de Páginas: 411
P.V.P. - 17,70€
SINOPSE OFICIAL:
Libby tinha sete anos quando a mãe e as duas irmãs foram assassinadas no «Sacrifício a Satanás de Kinnakee, no Kansas». Enquanto a família jazia agonizante, Libby fugiu da pequena casa da quinta onde viviam e mergulhou na neve gelada de janeiro. Perdeu alguns dedos das mãos e dos pés, mas sobreviveu e ficou célebre por testemunhar contra Ben, o irmão de quinze anos, que acusou de ser o assassino.
Passados vinte cinco anos, Ben encontra-se na prisão e Libby vive com o pouco dinheiro de um fundo criado por pessoas caridosas que há muito se esqueceram dela.
O Kill Club é uma macabra sociedade secreta obcecada por crimes extraordinários. Quando localizam Libby e lhe tentam sacar os pormenores do crime (provas que esperam vir a libertar Ben), Libby engendra um plano para lucrar com a sua história trágica. Por uma determinada maquia, estabelecerá contacto com os intervenientes daquela noite e contará as suas descobertas ao clube… e talvez venha a admitir que afinal o seu testemunho não era assim tão sólido.
À medida que a busca de Libby a leva de clubes de striptease manhosos no Missouri a vilas turísticas de Oklahoma agora abandonadas, a narrativa vai voltando atrás, à noite de 2 de janeiro de 1985. Os acontecimentos desse dia são recontados através da família de Libby, incluindo Ben, um miúdo solitário cuja raiva contra o pai indolente e pela quinta a cair aos pedaços o leva a uma amizade inquietante com a rapariga acabada de chegar à vila.
Peça a peça, a verdade inimaginável começa a vir ao de cima, e Libby dá por si no ponto onde começara: a fugir de um assassino.
O VEREDICTO:
Livro impiedoso e desconfortável.
Vale pela imprevisibilidade, pela narrativa com um cunho realista e laivos de crueldade, pelas descrições (por vezes um tanto ou quanto gráficas), pelos personagens, pelos acasos, desentendidos e segredos enterrados e pela tristeza que encerra.
«Tenho uma ruindade dentro de mim, palpável como um órgão. Cortem-me a barriga e provavelmente ela escorrega cá para fora, escura e carnuda, e cai no chão e alguém a pisa.»
(Pág.11)
Todos temos! Lamento, é a triste realidade.
Em maior ou menor escala todos nos debatemos com um mal aprosopo que escolhemos enterrar nas profundezas do nosso ser. Às vezes vem à tona, noutras permanece no abismo onde pertence. A complexidade indelével do ser humano é assustadora exactamente por sermos capazes tanto de feitos extraordinários como de atrocidades inenarráveis.
A experiência de Milgram é um bom exemplo desta ambivalência - não colocou à prova somente as implicações de uma obediência cega, fez-nos também questionar a teoria de uma natureza humana fundamentalmente boa.
Nós crescemos a acreditar que uma pessoa má é alguém que mata, que faz mal a outrem gratuitamente, que faz uso da violência mas, apresentadas as circunstâncias, não seremos todos capazes desta? Todos temos um rastilho que desencadeia o nosso lado mais «lunar» e nos leva ao limite, ao limiar da loucura... chamem-lhes irascibilidade, instinto de sobrevivência, auto-preservação, protecção ou outra coisa qualquer mas, em última instância, todos somos capazes do mal.
O segundo romance de Gillian Flynn perscruta este conflito interno. Através da trama apresentada através de múltiplas perspectivas (devidamente assinaladas), a norte-americana faz uma reflexão capciosa de como a esperança magoa e de como o passado pode condicionar toda uma vida. A protagonista Libby sobrevive resilientemente a uma espiral labiríntica de desespero, recalque e solidão para, ulteriormente, compreender o injustificável, perdoar o inconcebível e abrir uma fresta de luz no seu mundo de escuridão.
«A minha única vitória da noite foi o maço de notas que levava no bolso e o facto de saber que aquelas pessoas eram tão patéticas como eu.»
(Pág. 58)
« - Libby, tem noção de que meteu o saleiro e o pimenteiro no bolso?
Detive-me um segundo e pensei em fazer-me de surpreendida: oh, meu Deus, sou tão distraída. Em vez disso, fiz que sim com a cabeça e saí porta fora. Precisava do saleiro e do pimenteiro.»
(Pág.148)
Pauca sed bona. Expressão que descreve na perfeição o curriculum da autora. Pouca coisa, mas de boa qualidade. Flynn consolida-se aqui como mestre do género. O seu talento consiste em fazer-nos empatizar com as suas personagens, mesmo que estas ao início nos pareçam terrivelmente odiosas e não relacionáveis (como a Amy de «Em Parte Incerta»). Libby está perdida - é problemática, indolente, rude, inescrupulosa, egoísta, inconstante, tem tendências cleptomaníacas e uma quantidade imensurável de raiva reprimida - porém, ainda assim, acabamos irremediavelmente seduzidos por esta persona que criou para erguer um muro à sua volta. Acabamos por nos sentir solidários, por a compreender, torcer e até sofrer por ela.
«Desde então, tenho estado à espera de morrer.»
(Pág.62)
«Tomei nota mentalmente para tirar uma fotografia bonita e sorridente de mim própria, na eventualidade de um dia eu desaparecer.»
(Pág.119)
Enquanto a catarse não chega vamo-nos inteirando da dolorosa e confusa anátema a que Libby e o irmão chamam vida. Do fado nefário que os sujeitou a uma realidade inóspita mergulhada em lembranças passadas.
O que fazer quando o nosso mundo desmorona em frente aos nossos olhos?
O que não nos mata torna-nos de facto mais fortes ou só emocionalmente despedaçados?
«Cala-te e dispara. Às vezes, via imagens de armas, um cano de espingarda encostado à cabeça. Num dos seus cadernos, tinha escrito uma frase de Nietzsche que encontrara enquanto estava a folhear um livro de citações, um dia, (...):
A ideia do suicídio é uma grande consolação;
Ajuda a suportar muitas noites más.
Na verdade, (...) nunca se mataria. Não queria ser a aberração trágica que punha as miúdas a chorar em directo nas notícias, embora elas nunca lhe dirigissem a palavra na vida real. Não sabia porquê, mas isso parecia-lhe mais patético do que a sua vida já era. Ainda assim, à noite, quando as coisas estavam mesmo mal (...) era uma ideia reconfortante: ir ao armário onde a mãe guardava as armas (código 5-12-69, o aniversário do casamento dos pais, actualmente uma piada), sentir o peso agradável do metal nas mãos, enfiar umas balas na câmara, uma coisa tão fácil de fazer como espremer pasta dos dentes, encostar a arma à cabeça e disparar de imediato. Era preciso disparar logo, com a arma encostada, o dedo no gatilho, senão ainda se mudava de ideias. Tinha de ser de um gesto só e, depois, uma pessoa caía no chão como roupa que escorrega de um cabide. Assim...zás. Caía redonda no chão e, para variar, outra pessoa qualquer que resolvesse o problema.»
(Pág.152)
«Lugares Escuros» aborda questões tão sérias e palpáveis como o ressentimento, a frustração, os sentimentos de dúvida, impotência e os remorsos do sobrevivente. Estão a ver o síndrome de Estocolmo, quando a vítima desenvolve inadvertidamente sentimentos pelo captor? A culpa do sobrevivente é igualmente real e avassaladora. Quem escapa a algo terrível começa a questionar-se do porquê de ter resistido quando outros não o conseguiram. As memórias ecoam na cabeça, desfocadas e trémulas como se de um sonho se tratasse...
Descortinada a verdade, despedimo-nos das personagens com uma sensação de redenção e esperança que a nova Libby finalmente se permita amar e ser amada.
Não é isto, afinal, o que todos almejamos?