A nossa crítica: Na sua curta existência,
Flor Bela de Alma da Conceição Espanca conseguiu a proeza de ser considerada uma das maiores poetisas portuguesas de sempre e a
Editorial Presença, sempre atenta, resolveu prestar-lhe uma homenagem póstuma, reunindo uma colectânea com os seus poemas.
No segundo volume temos logo ao início a "Dedicatória", que nos dá as boas-vindas e cuja simplicidade nos faz querer mergulhar em profundidade na obra florbeliana:
"É só teu o meu livro; guarda-o bem;
Nele floresce o nosso casto amor
Nascido nesse dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor!"
Com introdução e organização do douto José Carlos Seabra Pereira (professor, investigador e ensaísta de referência), somos transportados para o mundo de Florbela, um mundo onde, nas palavras do mesmo "a inexequibilidade do «sonho» e a impossibilidade de erguer a quimera à função positiva" se aliam a um "post mortem imanente".
Apesar da sua juventude e de ter toda uma vida à sua frente, denota-se uma auto-depreciação latente, um desgosto em ver passar os anos, toda uma preocupação exacerbada e deslocada da velhice, como se pode ver nos poemas "Pior Velhice" - "Sou velha e triste. Nunca o alvorecer/ Dum riso são andou na minha boca!/Gritando que me acudam, em voz rouca,/Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!"- e "Velhinha" - "Se os que me viram já cheia de graça/Olharem bem de frente para mim,/Talvez, cheios de dor, digam assim: -«Já ela é velha! Como o tempo passa!...»
A dor de viver e o consequente tédio que daí advém é também objecto omnipresente de análise afincada, excessiva e cruel na sua poesia, fazendo-se facilmente adivinhar o infeliz desfecho da malograda poetisa:
"Poentes de agonia trago-os eu
Dentro de mim e tudo quanto é meu
É um triste poente de amargura!"
"Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada."
("Caravelas")
"Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!"
("Para quê?!")
"Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!"
("Angústia")
"Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!"
("Noite de Saudade")
"Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!"
("Alma Perdida")
"E o que me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente...
O mesmo lago plácido dormente...
E os dias, sempre os mesmos, a correr..."
("Tédio")
O amor e as paixões dilacerantes também serviram como fonte de inspiração, construindo aqui e ali, sem pejo, poemas carregados de erotismo e sensualidade:
"Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!"
("Amar!")
"Amiga... noiva... irmã... o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las
Ao beijar a esmola que me deres."
("Crucificada")
"Eu andarei por ti os maus caminhos
E as minhas mãos, abertas a diamante,
Hão-de crucificar-se nos espinhos
Quando o meu peito for o teu mirante!"
("Filtro")
"A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!"
("A nossa casa")
"Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!"
("III")
"No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte."
("Volúpia")
"Prende-me toda, Amor, prende-me bem!
Que vês tu em redor? Não há ninguém!
A Terra? - Um astro morto que flutua..."
("IV")
"Diz-me, Amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida."
("V")
Esta colectânea é portanto, na nossa opinião, e devido à qualidade quase insuperável dos seus versos, uma obra essencial a todos os que amam poesia e querem conhecer a prosa da autora e a sua incursão pela narrativa breve, que tal como José Pereira verifica, se desenvolve precocemente, assim como o seu "apego à criação lírica" embora em menor escala (o terceiro volume reúne os livros de contos publicados postumamente).
São livros carregados de alma, de mágoa, luxúria e desapego onde beijos e desejos se misturam freneticamente ao amargurado desespero obcecado pela morte.
Onde o mais belo se entrelaça despudoradamente ao que de mais obscuro conservamos intrinsecamente.
É também presença obrigatória na estante de todos os que conhecem unicamente
"Ser poeta" (poema mais conhecido de Florbela, imortalizado pelos
Trovante), que se encontra na página 162 do primeiro volume, já agora!