terça-feira, 18 de outubro de 2016

REVIEW: «Em Parte Incerta» (Livro)


FICHA TÉCNICA:
Autora: Gillian Flynn
Editora: Bertrand
Número de Páginas: 520
P.V.P. - 17,70€

SINOPSE OFICIAL:
Uma manhã de verão no Missouri. Nick e Amy celebram o 5º aniversário de casamento. Enquanto se fazem reservas e embrulham presentes, a bela Amy desaparece. E quando Nick começa a ler o diário da mulher, descobre coisas verdadeiramente inesperadas…
Com a pressão da polícia e dos media, Nick começa a desenrolar um rol de mentiras, falsidades e comportamentos pouco adequados. Ele está evasivo, é verdade, e amargo - mas será mesmo um assassino?
Entretanto, todos os casais da cidade já se perguntam, se conhecem de facto a pessoa que amam. Nick, apoiado pela gémea Margo, assegura que é inocente. A questão é que, se não foi ele, onde está a sua mulher? E o que estaria dentro daquela caixa de prata escondida atrás do armário de Amy?

O VEREDICTO:
«Dark and twisty». Estava às voltas para tentar encontrar a melhor descrição possível para 
«Em Parte Incerta» e só me vinham à memória as palavras de Meredith, a protagonista da série televisiva «Anatomia de Grey». Um livro sombrio, sinuoso e -  porque não dizê-lo de uma vez? - retorcido. Um livro de fazer estremecer as entranhas, que nos arrebata e nos pontapeia simultaneamente, que nos faz crer e ao mesmo tempo duvidar do amor. Se estão à procura de uma leitura «happy & bubbly» (parafraseando novamente a vítima dos devaneios de Shonda Rhimes médica mais desafortunada da história) podem ir bater a outra porta, pois Gillian Flynn é implacável e oferece-nos aqui um thriller tenso e envolto em mistério.

«Amy, estás em casa?
Fui a correr lá acima. Nada de Amy. A tábua de passar estava armada, o ferro ainda estava ligado e um vestido à espera de ser passado.
- Amy!
(...)
Comecei a correr, berrando o seu nome. Atravessei a cozinha, onde havia uma chaleira a queimar-se, fui até à cave, onde o quarto de hóspedes continuava vazio, e depois saí pela porta das traseiras. Atravessei pesadamente o pátio até à plataforma de embarque que se prolongava sobre o rio. Espreitei de lado para ver se ela estava no nosso barco a remos, onde a encontrara um dia, amarrada à doca, a baloiçar na água, de rosto virado para o sol, olhos fechados, e quando eu examinara os reflexos deslumbrantes do rio no seu lindo rosto imóvel, tinha aberto os seus olhos azuis de repente sem me dizer nada, e eu nada lhe disse, e voltei para casa sozinho.
- Amy!
Não estava na água, não estava dentro de casa. Amy não estava ali.
Amy tinha desaparecido.»
(Pag.39)

Supostamente, o enredo da obra gira em torno do desaparecimento de uma mulher e o impacto e as repercussões que essa súbita ausência têm na vida do seu marido, mas «Em Parte Incerta»  é muito mais do que isto. Mesmo com todas as reviravoltas da intriga  é, no seu âmago, um ensaio sobre a vida matrimonial, uma enchente de observações demolidoras sobre o sequestro da individualidade no casamento, da distância abismal entre duas pessoas que dormem numa mesma cama.

«Também penso nisso: na sua mente. No seu cérebro, com todas aquelas circunvoluções, e os seus pensamentos a percorrerem-nas como centopeias velozes e frenéticas. Como uma criança, imagino-me a abrir-lhe o crânio, a desenrolar-lhe o cérebro e a vasculhá-lo, tentando agarrar e imobilizar os seus pensamentos. Em que estás a pensar, Amy? A pergunta que mais vezes fiz durante o nosso casamento, mesmo que não a tenha feito à pessoa que podia responder. Suponho que estas perguntas surjam como nuvens ameaçadoras sobre todos os casamentos: Em que estás a pensar? O que estás a sentir? Quem és tu? O que fizemos um ao outro? O que é que vamos fazer?» (Pag.13)

No início de uma relação todos, sem excepção, mostram apenas o melhor de si. Entramos numa dimensão exemplar, sem falhas nem defeitos. Somos descontraídos, divertidos, «simpáticos, bonitos e inteligentes» e embarcamos numa espiral de amor e paixão com direito a borboletas no estômago e picardias sexy, onde não há lugar para «sexo respeitador e rituais de gases à hora de deitar»

«Sem complicações.»

«Trá-lá-lá! Estou com um grande sorriso de orfã adoptada enquanto escrevo isto. Até me envergonho da felicidade que sinto, como a personagem adolescente de um livro de banda desenhada a cores, a falar ao telefone com o cabelo apanhado em rabo de cavalo e o balão sobre a minha cabeça a dizer: Conheci um rapaz!
E conheci. Esta é a verdade técnica e empírica. Conheci um rapaz, um tipo maravilhoso e lindo, um gajo divertido e porreiro. (Pág.22)
(...)
- Por favor, não coma nada que esteja nessa área - diz uma voz. É ele (...).
- Afaste-se desse tabuleiro. James tem mais uns três artigos comestíveis no frigorífico. Posso fazer-lhe uma azeitona com mostarda. Mas só uma azeitona.
Mas só uma azeitona. Não passa de uma deixa ligeiramente divertida, mas que já dá a sensação de uma piada privada, que se tornará divertida com a repetição nostálgica.» (Pág.25)

«Passamos outra hora a tentar encontrarmo-nos, a tentar reconhecermo-nos, e bebemos um bocadinho demais e esforçamo-nos demais. E depois voltas para casa, para a cama fria, e pensas: Foi bom, E a tua vida passa a ser uma longa sucessão de bons.
Depois, dás de caras com alguém como Nick Dunne (...) e zás! Ambos somos conhecidos e reconhecidos. Ambos achamos as mesmas coisas dignas de serem recordadas. (Mas só uma azeitona.) Temos o mesmo ritmo. Clique. Conhecemo-nos mutuamente. De repente, vês-te a ler na cama e waffles ao domingo e a rir por nada e a boca dele na tua. E é tão para lá de bom que sabes que não podes voltar ao bom. Assim de repente. E pensas: Oh, aqui está o resto da minha vida. Chegou finalmente.» (Pág.46)

«Estou gorda de amor! Rouca de ardor! Obesa mórbida de devoção! Uma abelha-mestra feliz e efervescente de entusiasmo conjugal. Ando praticamente a zumbir à volta dele, numa azáfama, a arranjar as coisas. Tornei-me uma coisa estranha. Tornei-me esposa.»
(Pág.56)

Subitamente, o resto da nossa vida parece-nos comprido demais, enfadonho demais, repetitivo demais... complicado demais! Damos por nós algemados ao quotidiano, acorrentados a uma convenção, inequivocamente presos nas garras da banalidade.

«Estamos outra vez sem leite. (Eu hoje vou comprar.) Preciso disto passado a ferro como deve ser. (Eu faço isso hoje.) É assim tão difícil comprar leite? (Silêncio.) Esqueceste-te de chamar o canalizador. (Suspiro.) Porra! Veste o casaco e vai comprar a porcaria do leite. Agora.»
(Pág.83)

Frustrados. Desiludidos. Desenganados.
Os dias sucedem-se em catadupa e com eles a certeza de partilhar a vida com um perfeito estranho. Dois desconhecidos a tentar coabitar e conhecer-se intimamente. 

«Há uma diferença entre amar realmente alguém e amar a ideia que fazemos dessa pessoa.»
(Pág.35)

A rotina instala-se, o ressentimento adensa-se, a paixão desvanece-se e cimenta-se noutra coisa qualquer. 
Para uns, a coisa acaba por resultar - as particularidades de um encaixam-se perfeitamente nas do outro -, noutros há diálogos, negociações e cedências e ulteriormente tudo funciona - mesmo com todos os defeitos adjacentes - e para outros, como o casal Amy e Nick, a separação augura-se inevitável.
O que seria de esperar de uma sociopata e de um egocêntrico?
Por quem torcer, afinal?

«Disseram-me que o amor devia ser incondicional. É essa a regra, toda a gente o diz. Mas se o amor não tivesse fronteiras, limites, condições, porque é que alguém havia de tentar alguma vez fazer o que é certo? Se souber que sou amada, aconteça o que acontecer, onde é que está o desafio? Devo amar Nick, apesar de todos os seus defeitos. E Nick deve amar-me, apesar das minhas bizarrias. Mas é óbvio que nenhum dos dois o faz. Isso faz-me pensar que toda a gente está enganada, que o amor devia ter muitas condições. O amor devia requerer que  ambos os parceiros fossem o melhor possível em todas as alturas. O amor incondicional é um amor indisciplinado e, como todos vimos, o amor indisciplinado é desastroso.»
(Pág.510)

«Sim, estou finalmente à altura de Amy. Ontem de manhã, acordei junto dela e analisei a parte de trás do seu crânio. Tentei ler-lhe os pensamentos. Por uma vez, não me senti como se estivesse a olhar para o sol. Estou a mostrar-me à altura do nível de loucura da minha mulher. porque consigo senti-la a mudar-me outra vez: fui um rapaz imaturo, e depois um homem, bom e mau. Agora, finalmente sou o herói. Sou aquele por quem devem torcer na história de guerra interminável do nosso casamento. É uma história com que consigo viver. Que diabo! Nesta altura não consigo imaginar a minha história sem Amy. Ela é a minha eterna antagonista.
Somos um clímax longo e assustador.»
(Pág.509)

Sim, é isto! Bem melhor que "dark and twisty". Um "clímax longo e assustador" parece-me uma excelente descrição. Ou então:

a) Um livro perturbador, com personagens loucas com as quais acabamos por desenvolver um relacionamento empático;
b) Uma narrativa desconcertante e incisiva, com laivos espirituosos e uma toada bem menos sinistra que «Lugares Escuros»;
c) Uma parábola agridoce sobre a vida conjugal. Isto não é uma história de amor. Ou é?
d) Todas as acima enunciadas.

Resposta: D.

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